Vem ganhando força nos tribunais de São Paulo e do Rio de Janeiro uma nova forma de interpretar as discussões relacionadas aos distratos - casos em que o cliente desiste do contrato de compra e venda de um imóvel na planta.
Os desembargadores têm levado em consideração, ao analisar esses processos, o perfil do comprador e decido que deve haver tratamento diferenciado aos que adquiriram o bem para investimento e não para uso próprio.
A mudança tem impacto na definição dos valores que serão devolvidos aos clientes e na forma de pagamento e correção do preço.
As decisões anteriores colocavam todos os clientes na mesma condição e tinham como base a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), o que permitia a devolução de até 90% dos valores que haviam sido pagos pelo imóvel.
Agora, quando a compra é feita para investimento, os magistrados têm entendido que deve-se aplicar o Código Civil. E, nesse caso, a determinação é para que se cumpra o contrato assinado entre o comprador e o vendedor.
O que se vê são percentuais de devolução mais baixos, em média 70% do que havia sido pago pelo cliente. Além disso, tem sido permitida, nos tribunais, a devolução parcelada desses valores, a aplicação de juros somente após a decisão final e a correção monetária calculada a partir do ajuizamento da ação.
Como consumidores comuns seria diferente: valores pagos à vista, aplicação de juros já a partir da citação da ação e correção monetária calculada a partir da data de desembolso do cliente.
"Isso tudo representa uma mudança expressiva dentro da restituição e possibilita um equilíbrio na condução dessa questão dos distratos", diz a advogada Rosangela Gazdovich, do escritório Bicalho e Mollica Advogados.
Antes, complementa, "havia casos em que o adquirente recebia até mais do que tinha pago". O tema é um dos mais importantes para as empresas da construção civil e a mudança de jurisprudência, segundo especialistas, tem grande impacto no setor porque não há lei regulamentando a questão.
O número de distratos, crescente desde o começo da crise, há cerca de quatro anos, é considerado altíssimo. Só no ano passado, segundo pesquisa da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), as desistências dos clientes representaram o equivalente a 31,6% das vendas de imóveis novos.
"Muitas empresas estão prestes a quebrar por causa disso", afirma Olivar Vitale, conselheiro jurídico do SindusCon-SP e sócio do VBD Advogados.
Ele faz uma retrospectiva sobre o tema. Lembra que a discussão veio à tona nos anos 90, quando os magistrados passaram a permitir a rescisão do contrato nos casos em que o comprador não tinha mais como arcar com o pagamento. "Era um pedido motivado e diferente do que se viu nessa segunda crise econômica", diz o advogado.
Já há decisões com a nova interpretação, diferenciando o cliente investidor daquele que adquiriu o imóvel para uso próprio, nas 4ª, 6ª e 7ª Câmaras de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e também na 25ª Câmara Cível do Tribunal do Rio de Janeiro (TJ-RJ).
Em um dos processos na Corte paulista (Apelação nº 1116739-74.2016.8.26.0100), dois compradores tentavam se desfazer da aquisição de dez unidades de uma só vez.
Também há caso de tentativa de quebra de contrato de compra de salas comerciais (Apelação nº 1003676-90.2015. 8.26.0590) e aquisição de quarto de hotel (Apelação nº 1110740-43.2016.8.26.0100).
Relator de um desses casos, o desembargador Teixeira Leite destacou em seu voto que a compra de um imóvel na planta não pode ser uma "opção de graça", que permite ao cliente ficar com o imóvel se o preço subir ou, se cair, ter o seu dinheiro de volta. "Isto, além de criar uma crise de liquidez nas incorporadoras, forçam as mesmas a vender as unidades abaixo do custo, gerando um prejuízo real e contábil muito grande, uma vez que os resultados destas vendas já haviam sido contabilizados e terão que ser revertidos", diz o magistrado na decisão.
Já o relator de um dos casos no TJ-RJ (Apelação nº 0066013-17.2016.8.19.0001), desembargador Luiz Fernando de Andrade Pinto, comparou a discussão a uma situação inversa. "Imagine que por conta da consabida retração substancial do mercado imobiliário, a construtora/incorporadora estivesse em dificuldade de adimplir sua parte na avença. Certamente essa postura seria desafiada judicialmente e, por óbvio, o Judiciário asseveraria sua ilicitude", afirma o magistrado em seu voto.
Especialistas na área, Luis Rodrigo Almeida e Ana Carolina Medina, do Viseu Advogados, acreditam que há uma consolidação desse entendimento nos tribunais e dizem que não é difícil para as empresas do setor diferenciarem os dois tipos de consumidor. "Basta olhar o volume de unidades adquiridas, o tipo do imóvel ou mesmo o perfil do consumidor, se é alguém que tem condições de discernir que trata-se de uma compra irrevogável e também se há outras ações de distrato movidas por ele", diz Almeida.
Os advogados acreditam ainda que com as novas decisões judiciais devem cair os números de ações sobre o tema. "A expectativa de ter o dinheiro de volta vai mudar. E esse choque de realidade pode fazer com que os acordos entre os clientes e as construtoras e incorporadoras saiam mais facilmente, sem que seja necessário levar a discussão para o Judiciário", afirma o advogado. Fonte: Valor Econômico