INTRODUÇÃO
A discussão sobre a privatização das praias brasileiras ganhou destaque com a Proposta de Emenda à Constituição nº 03, de 2022 (PEC), conhecida como "PEC da Privatização das Praias". No entanto, é crucial entender o que essa PEC realmente propõe. A principal mudança sugerida no texto constitucional envolve a transferência de terrenos da Marinha do Brasil (União) para Estados e Municípios, além do fim do laudêmio e das taxas de foro das terras da Marinha.
O conceito de laudêmio possui raízes históricas que remontam ao período colonial, quando as terras eram concedidas em aforamento (uma espécie de arrendamento perpétuo) pelo Estado ou pela Igreja. Os terrenos de marinha são uma herança desse período e referem-se a áreas próximas à linha costeira, sob domínio da União.
De acordo com o Decreto-Lei nº 9.760, de setembro de 1946, em seus artigos 2º e 3º, terrenos de marinha são definidos como aqueles situados até 33 metros para o interior, contados a partir da posição da linha média dos preamares do ano de 1831.
Na Emenda Constitucional nº 46, de 2005, em seu artigo 20º, inciso VII, ficou estabelecido que os terrenos de marinha são bens da União, e toda a arrecadação proveniente dos mesmos pertence à União.
Portanto, a principal discussão do tema não é a "privatização das praias", como amplamente divulgado nas redes sociais e na mídia em geral, mas sim a transferência da gestão desses terrenos para estados e municípios, além do fim de taxas associadas a eles.
Este artigo tem como objetivo elucidar dúvidas acerca do tema, proporcionando uma compreensão técnica e esclarecedora sobre o assunto.
DO FIM DOS TERRENOS DE MARINHA E DA UNIÃO
Como foi mencionado na introdução, os terrenos de marinha foram definidos no Decreto-Lei nº 9.760, de setembro de 1946, em seus artigos 2º e 3º. Terrenos de marinha são definidos como aqueles situados até 33 metros para o interior, contados a partir da posição da linha média dos preamares do ano de 1831.
Artigo 2º: "São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha das preamares médias do ano de 1831, os situados: a) no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés; b) nas ilhas situadas em zonas onde se faça sentir a influência das marés."
Artigo 3º: "A linha das preamares médias do ano de 1831, a que se refere o artigo anterior, será considerada a posição média das preamares de sizígias, observadas durante o ano de 1831."
Esses artigos estabelecem a base legal para definir os terrenos de marinha, um conceito importante para a gestão dos bens imóveis da União no Brasil.
Na Emenda Constitucional nº 46, de 2005, em seu artigo 20º, inciso VII, ficou estabelecido que os terrenos de marinha são bens da União.
Art. 20. São bens da União:
VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos; (CF/88)
Desta maneira, a Proposta de Emenda à Constituição nº 03, de 2022 (PEC), em seu primeiro artigo, vem delimitar quais serão as terras da Marinha e da União, não mais sendo regulamentada pelo Decreto-Lei nº 9.760, de setembro de 1946, e pela EC nº 46, de 2005.
As áreas da União ficaram definidas da seguinte maneira: as áreas que são afetadas pelo serviço público federal, de maneira geral, permanecem sob domínio da União, conforme o artigo 1º, inciso I, da PEC.
Art. 1º As áreas definidas como terrenos de marinha e seus acrescidos passam a ter sua propriedade assim estabelecida: I – continuam sob o domínio da União as áreas afetadas ao serviço público federal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos e a unidades ambientais federais, e as áreas não ocupadas;
Passaram para o domínio pleno dos Estados e Municípios as terras que são afetadas pelos serviços públicos estaduais e municipais, conforme o art. 1º, inciso II, da PEC.
II – passam ao domínio pleno dos respectivos Estados e Municípios as áreas afetadas ao serviço público estadual e municipal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos;
Segundo o parágrafo segundo desta PEC, as áreas não ocupadas que o inciso primeiro trata serão transferidas para os municípios, desde que atendidos os requisitos estipulados no artigo 182 da CF de 1988.
§ 2º As áreas não ocupadas de que trata o inciso I do caput deste artigo requeridas para o fim de expansão do perímetro urbano serão transferidas ao Município, desde que atendidos os requisitos exigidos pela lei que regulamenta o art. 182 da Constituição Federal e as demais normas gerais sobre planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.(PEC 03/2022)
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes. (Regulamento) (Vide Lei nº 13.311, de 11 de julho de 2016)
§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.
§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. (CF/88)
Transferiram-se para o domínio pleno das pessoas que têm posse pública dos terrenos (foreiros) que estão devidamente registrados no órgão de gestão do patrimônio da União até a data da publicação desta emenda.
III – passam ao domínio pleno dos foreiros e dos ocupantes regularmente inscritos no órgão de gestão do patrimônio da União até a data de publicação desta Emenda Constitucional; (PEC 03/2022)
Os ocupantes que não estão devidamente registrados no órgão de gestão do patrimônio da União, e que ocuparam o terreno até 5 (cinco) anos antes da data da publicação desta emenda, respeitando a boa fé, passam a ter domínio total do terreno.
IV – passam ao domínio dos ocupantes não inscritos, desde que a ocupação tenha ocorrido pelo menos 5 (cinco) anos antes da data de publicação desta Emenda Constitucional e seja formalmente comprovada a boa-fé; (PEC 03/2022)
Sobre as pessoas que receberam terrenos da União, estas também passam a ter domínio pleno da área que foi cedida.
V – passam aos cessionários as áreas que lhes foram cedidas pela União. (PEC 03/2022)
O primeiro parágrafo do artigo primeiro vem para definir em que termos serão feitas essas transferências, se haverá indenização ou não para a União na transferência de seus bens para os sujeitos supracitados, e para delimitar o lapso temporal em que poderá ser cobrada a reparação sobre o bem. A PEC deixa claro que nos casos de terrenos ocupados para habitação social, a transferência será feita de forma gratuita.
§ 1º A transferência das áreas de que trata este artigo será realizada de forma: I – gratuita, no caso das áreas ocupadas por habitação de interesse social e das áreas de que trata o inciso II do caput deste artigo; II – onerosa, nos demais casos, conforme procedimento adotado pela União nos termos do art. 3º desta Emenda Constitucional. (PEC 03/2022)
Segundo o parágrafo único, nas transferências mencionadas no inciso III do caput do art. 1º desta Emenda Constitucional, serão deduzidos os valores pagos nos últimos cinco anos a título de foros (taxas pagas pelo uso de terras pertencentes ao governo) ou de taxas de ocupação (pagamentos pela ocupação de terrenos públicos), corrigidos pela taxa do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic).
O objetivo desse parágrafo é garantir que, ao realizar as transferências de propriedade, os valores já pagos pelos ocupantes ou foreiros nos últimos cinco anos sejam considerados e atualizados, reduzindo assim o montante a ser eventualmente pago no momento da transferência. Isso oferece uma forma de compensação financeira justa para os ocupantes, garantindo que eles não paguem novamente por algo já quitado, ajustado pela inflação e pelas condições econômicas atuais através da taxa Selic.
Parágrafo único. Nas transferências de que trata o inciso III do caput do art. 1º desta Emenda Constitucional, serão deduzidos os valores pagos a título de foros ou de taxas de ocupação nos últimos 5 (cinco) anos, corrigidos pela taxa do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic).
Por fim, a PEC 03, de 2022, em seu artigo 4º, revoga o inciso VII do art. 20º da CF de 1988, desvinculando os bens da marinha dos bens da União, que assim ficaram estabelecidos anteriormente.
Art. 4º Ficam revogados o inciso VII do caput do art. 20 da Constituição Federal e o § 3º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. (PEC 03/2022)
Art. 20. São bens da União:
VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos; (CF/88)
Fica estabelecido no art. 3º desta PEC que a União terá um prazo de 2 (dois) anos para estabelecer as transferências dos bens, conforme está escrito nesta PEC.
Art. 3º A União adotará as providências necessárias para que, no prazo de até 2 (dois) anos, sejam efetivadas as transferências de que trata esta Emenda Constitucional.
DO FIM DO LAUDÊMIO E TAXAS DE FORO
Antes de adentrarmos no texto frio da lei, faz-se necessário realizar uma digressão e explicar o que são essas taxas cobradas em terrenos de Marinha e como a PEC pretende excluí-las do nosso ordenamento.
O laudêmio é uma taxa cobrada pela União sobre a venda ou transferência de propriedades situadas em terrenos de marinha. Esses terrenos são áreas próximas à linha costeira que pertencem à União. O laudêmio tem raízes históricas no período colonial, quando terras eram concedidas em aforamento, uma espécie de arrendamento perpétuo pelo Estado ou pela Igreja. Quando o proprietário de um imóvel em terreno de marinha vende ou transfere a propriedade, ele deve pagar à União um percentual sobre o valor do imóvel. Esse percentual, geralmente de 5%, é uma compensação pela valorização que a terra recebeu ao longo do tempo.
As taxas de foro são encargos anuais pagos pelos ocupantes de terrenos de marinha à União. Diferentemente do laudêmio, que é cobrado na transferência da propriedade, as taxas de foro são pagas regularmente, como uma espécie de aluguel pela ocupação contínua do terreno. Essas taxas também têm origem no sistema de aforamento, onde o ocupante tinha o direito de usar a terra de forma perpétua, mas pagava uma taxa anual pelo seu uso. As taxas de foro são calculadas com base no valor do terreno e podem variar conforme a localização e o uso da propriedade.
A Proposta de Emenda à Constituição nº 03, de 2022, propõe mudanças significativas na gestão dos terrenos de marinha. Entre essas mudanças, está o fim do laudêmio e das taxas de foro, transferindo a administração dessas áreas da União para os estados e municípios. Essa alteração visa simplificar a gestão dessas terras e eliminar os encargos financeiros que proprietários e ocupantes de terrenos de marinha enfrentam atualmente.
Passado o contexto do que são essas taxas de ocupação, veremos como a PEC de nº 03, de 2022, pretende extinguir a cobrança dessas tarifas. Em seu artigo 2º, ela deixa de forma expressa que não poderá ser cobrado de forma alguma esses encargos nessas áreas.
Art. 2º Fica vedada a cobrança de foro e de taxa de ocupação das áreas de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, bem como de laudêmio sobre as transferências de domínio, a partir da data de publicação desta Emenda Constitucional.
Por fim, a PEC 03, de 2022, em seu artigo 4º, revogou de forma tácita o parágrafo 3º do art. 49 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, decretando assim o fim definitivo da cobrança de taxas de foro e laudêmio em terras de marinha.
Art. 49. A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos.
§ 3º A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima.
CONCLUSÃO
Como foi visto no decorrer deste artigo, a PEC 03, de 2022, não trata da privatização de praias, como vem sendo divulgado por parte do governo e de boa parte da mídia. O principal objetivo desta PEC é simplificar os encargos que os ocupantes de áreas de marinha enfrentam atualmente e revisar o entendimento sobre a extensão das áreas de marinha estabelecidas em 1831.
A PEC também busca conferir mais protagonismo a Estados e Municípios, atribuindo-lhes maiores responsabilidades sobre as praias, pois terão mais poder sobre o patrimônio. Todo o alvoroço deve-se ao fim de uma fonte de arrecadação adicional para a União, que deixará de existir, conforme foi explicado ao longo do artigo. Fonte: Jusbrasil